Cicatrizes

Pelo vidro do carro, vejo as ruas estreitas do bairro onde cresci. Há anos que não passo por aqui, mas tudo parece o mesmo. As calçadas moldadas por passos e destinos, os postes inclinados, os muros cobertos de rabiscos, estradas marcadas pela dança do tempo, ruas que carregam memórias. No entanto, cada rua que atravesso, cada esquina que viro têm agora um significado diferente, porque eu não sou mais o mesmo.

O meu pai tinha um aspeto rude, a sua voz era autoritária, ausente de sentimentos e, quando bebia, roçava a violência. Bem diferente da minha mãe, sempre cautelosa, pois sabia que uma única palavra, mal interpretada, poderia iniciar uma acesa discussão. A sua voz era suave, e ela estava sempre a esconder as minhas travessuras, porque o meu pai não compreendia que eram apenas coisas de criança. Por diversas vezes, a revolta ardia dentro de mim, e tudo o que eu queria era enfrentá-lo e dizer-lhe tudo o que sentia. Mas eu era apenas uma criança, e o meu corpo pequeno nunca seria capaz de enfrentar a fúria do meu pai. Então, eu sonhava em fugir, desejava crescer rápido e nunca mais voltar.

Talvez o meu pai nunca tenha tido a oportunidade de ser apenas uma criança; para ele as responsabilidades chegaram cedo demais. Talvez, por trás da sua rudeza e violência, houvesse uma dor que ele não sabia como expressar, uma infância roubada que ele carregava como um fardo invisível. Havia nele um silêncio profundo, como se o tempo nunca tivesse sido generoso, como se jamais tivesse tido espaço para sonhar.

A minha mãe tentava dar-me tudo o que ele não sabia oferecer, mas, às vezes, eu perguntava-me se ela também carregava a mesma tristeza escondida. A minha mãe chorava baixinho, como se até a sua tristeza precisasse de ser silenciosa, reprimida e impercetível. Lembro-me do cheiro do pão acabado de cozer e da bolinha que a minha mãe fazia para mim com os restos da farinha. Depois de retirá-la do forno, colocava-lhe azeite e açúcar, e naquele momento nada no mundo parecia mais saboroso. Lembro-me também de quando voltava do campo, cansado e cheio de frio, e a minha mãe aquecia uma toalha e enrolava-a nas minhas mãos geladas. Pequenos gestos como esses aqueciam o meu coração.

Apesar de tudo, era na escola que eu encontrava um refúgio. Foi ali, entre os livros e os cadernos, que uma professora percebeu algo em mim que eu mesmo não conseguia enxergar. A professora Maria da Fé, com seu olhar atento e acolhedor, nunca se cansou de me chamar para conversar. « Tu tens potencial », dizia ela, com um sorriso que parecia abrir portas dentro de mim. Eu não entendia muito bem o que ela via, mas a forma como falava de mim fazia-me acreditar que, talvez, eu pudesse ser algo mais do que aquilo que as circunstâncias me impunham.

Acreditei nela, mesmo quando os outros me olhavam com desconfiança, mesmo diante das risadas contidas dos colegas, que reparavam nos remendos das minhas roupas, mesmo quando o meu pai não reconhecia a importância de eu precisar de tempo para me dedicar aos estudos. No silêncio da noite, estudava à luz de velas, engolindo cada palavra para que o meu pai não me ouvisse do outro lado da frágil parede. Às vezes, o mundo parecia conspirar contra mim, com o vento a bater na janela, o estalar da vela a arder, o meu

coração acelerado a cada página virada, o que aumentava ainda mais o meu receio de ser apanhado. Eu sabia que, se o meu pai descobrisse que eu estava a estudar, a raiva tomaria conta de tudo. Para ele, os livros e os sonhos não faziam parte do nosso mundo.

Mas, com o tempo, as palavras começaram a fazer sentido. A cada etapa conquistada eu afastava-me um pouco mais da escuridão. Era mais um passo, para longe daquele bairro que me prendia e das sombras que me acompanhavam. Cada fórmula, cada exercício resolvido, era uma pequena vitória contra os fantasmas da minha infância. E, mesmo sabendo que o futuro era incerto, eu agarrava-me àquele pequeno raio de esperança. A professora Maria da Fé fez-me ver que, apesar das minhas cicatrizes, eu ainda poderia escrever o meu próprio destino. Ela ensinou-me a lição mais importante de todas: que a força não vem do que temos, mas do que somos capazes de superar. O futuro parecia um lugar distante, mas a cada passo, eu fui distanciando-me daquele passado sombrio, como se estivesse finalmente conquistado a minha própria liberdade.

 

E agora, aqui estou eu, de volta.

Paro o carro em frente à antiga casa, agora desgastada pelo tempo. O portão, ainda o mesmo, emite um rangido triste ao menor toque, como se reclamasse da minha presença. O lugar guarda em si lembranças doces e amargas de um tempo que tento esquecer, mas que nunca me deixou de verdade. No entanto, a dor que me marcou não é mais uma prisão, e sim um mapa, uma estrada que percorri para chegar até aqui.

Na varanda, carregada de história, dois rostos envelhecidos descansam num banco de madeira, como almas perdidas. A essência de quem foram está ali, marcada pelo tempo. O rosto do meu pai, ainda uma máscara de dureza, e o da minha mãe, com traços de uma suavidade que o tempo não conseguiu apagar. Eles estão ali, imóveis, com expressões tranquilas como se aguardassem a minha chegada, desde sempre.

Olho para aquele banco, para aqueles rostos, e percebo que o tempo fez o que nem a dor nem a raiva conseguiram, tornou-os humanos. As cicatrizes que carrego já não são apenas minhas, são nossas. As sombras do passado ainda estão ali, mas agora posso encará-las sem medo. Já não sou o menino assombrado pelos gritos, nem o jovem em fuga. O passado não me prende mais, ele apenas me lembra de quem me tornei. Deixando as cicatrizes no passado, mas com a força que elas me proporcionaram, respiro fundo, avanço um passo e sigo em frente.